
Você já se pegou acompanhando de perto o “cancelamento” de alguém na internet? Viu o nome da pessoa subir nos assuntos do momento, clicou pra saber o que ela disse, e de repente estava lendo os comentários, os vídeos de reação, os memes, os desabafos? Se sim, você não está sozinho. E não é de hoje que gostamos de assistir a histórias de queda e punição.
Na Grécia Antiga, o teatro era o lugar onde as pessoas iam para viver, por tabela, os dramas de personagens grandiosos que cometiam erros, sofriam e, ao fim, enfrentavam as consequências de seus atos. Esse tipo de espetáculo provocava no público uma catarse — ou seja, uma descarga emocional, uma purificação da alma.
Talvez estejamos vivendo uma nova forma de catarse… só que agora no feed.
A tragédia digital
Quando alguém é cancelado, vemos um roteiro que parece tirado diretamente das tragédias gregas: um erro (real ou percebido), a reação do público, o julgamento coletivo e a punição. O que muda é o palco — agora, são as redes sociais — e o fato de que o público não é só espectador, mas também parte ativa da narrativa. Todo mundo comenta, compartilha, reage. É como se estivéssemos todos “na plateia”, mas também em cena.
No teatro, a catarse vinha ao final da história. No cancelamento digital, ela pode vir na forma de um alívio: “Viu? Ele foi punido. Ela mereceu. Isso não pode passar impune.” Há um senso de justiça simbólica, que até pode ter sua função. Mas será que essa função está sendo cumprida de forma justa?
Rápido para cair, difícil para levantar
O mais assustador do cancelamento é sua velocidade. Um post viraliza, alguém junta prints, um vídeo é cortado fora de contexto — e pronto, temos um novo “vilão” da internet. E enquanto o cancelamento acontece em questão de horas, a reconstrução da reputação pode levar anos… quando acontece.
Isso revela algo importante: estamos vivendo uma época em que a punição é instantânea, mas o perdão é escasso. A tragédia é pública, mas a reconstrução é solitária.
Julgar, punir, esquecer
Assim como nas tragédias gregas, em que os deuses determinavam o destino do herói, hoje temos novos “deuses”: o algoritmo, os likes, os comentários. Eles decidem o que será visto, quem será ouvido, quem será apagado. E muitas vezes, quem cancela hoje, já esqueceu amanhã — mas quem foi cancelado dificilmente esquece.
Pior ainda: muitas vezes, o cancelamento vira entretenimento. A dor do outro vira meme, a crise pessoal vira espetáculo. E se tem algo que a história da arte nos mostra, é que a linha entre justiça e espetáculo pode ser muito fina — e perigosa.
Então… gostamos da desgraça alheia?
Pode ser duro admitir, mas sim — há algo de prazeroso em assistir à queda do outro, especialmente quando essa pessoa parecia estar “por cima”. É um tipo de emoção forte, quase viciante. Só que, ao contrário do teatro grego, em que a dor servia para nos fazer refletir sobre a condição humana, hoje muitas dessas histórias terminam com um linchamento virtual que pouco contribui para o aprendizado coletivo.
A catarse que nos ensina… ou que nos cansa?
A pergunta que fica é: que tipo de catarse estamos vivendo? Aquela que purifica… ou aquela que só alimenta mais raiva e divisão? Estamos realmente interessados em justiça, ou só queremos sentir algo — qualquer coisa — que nos faça esquecer, por um momento, da nossa própria impotência?
A cultura do cancelamento, quando observada com o olhar da história da arte, revela muito sobre nós. Talvez seja hora de repensar não só como reagimos aos erros dos outros, mas o que esperamos disso tudo. Que tipo de plateia queremos ser?