Com o trabalho infantil digital não se brinca — Brasil de Fato

É inegável que a aprovação do chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) Digital, Lei 15.211/25, é um avanço para as crianças brasileiras. Uma vitória histórica que foi construída a muitas mãos, com especialistas de diversas áreas, como saúde, direitos digitais e infância, entidades do terceiro setor, apoio do Executivo e, claro, mobilização popular. Não é de hoje que a sociedade tem tentado aprovar algo que regule minimamente a atuação das plataformas digitais dentro do país. 

Há cerca de três anos, quando o PL 2630/20, que tentou instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, estava em debate, a disputa avançou, mas seguiu extremamente desigual. Com grande lobby das plataformas e apoio de parlamentares de extrema direita, o projeto de lei foi enterrado, mas deixou como legado o acúmulo do debate incansável promovido pela sociedade civil naquele momento. Os avanços de lá também se somaram a essa vitória das crianças brasileiras de agora.

Talvez o mais direto desses seja a corresponsabilização e as obrigações das plataformas e serviços digitais previstos no Estatuto Digital. Dentre elas, estão a implementação de medidas de proteção desde a concepção dos sistemas, os chamados ‘privacy by design’; a criação de mecanismos confiáveis de verificação de idade; ferramentas de controle parental, com vinculação, inclusive, de contas de menores de 16 anos a um responsável legal; remoção de conteúdos ilícitos; o estabelecimento de regras mais estritas para o tratamento de dados pessoais de menores; além da imposição de restrições à publicidade dirigida. Essa mudança deve ser aplicada no prazo de seis meses, e o descumprimento pode acarretar, em último caso, a suspensão e proibição das atividades.

Do ponto de vista de quem recebe o conteúdo, o texto da lei, se efetivamente for colocado em prática, traz um novo marco para as infâncias brasileiras e um suporte maior para as famílias, que também precisam ainda de acolhimento, debates sobre o assunto e letramento digital.

No entanto, a lei não enfrentou de maneira mais contundente o trabalho infantil digital. No texto, e muito provavelmente para responder ao calor da sociedade a partir da importantíssima manifestação do youtuber Felca, a lei se restringiu a vedar a monetização de conteúdos que retratam crianças e adolescentes em contextos erotizados ou sexualizados. Portanto, tudo que não é deste teor fica de fora. E há uma vastidão de impactos para as crianças com base nessa permissividade.

A campanha #SalveBel, amplamente divulgada, surgiu em 2020 a partir da observação dos vídeos de Bel, uma influenciadora mirim. Ela fazia sucesso no YouTube com conteúdo voltado para unboxing (abertura de presentes e brinquedos), maquiagem e rotina familiar.

Muitos seguidores notaram que a menina frequentemente aparecia triste, cansada ou desconfortável durante as gravações, o que gerou a percepção de que ela estava sendo forçada a trabalhar. Após a comoção, a própria menina e sua mãe declararam estar sendo alvo de ataques. No entanto, após um vídeo feito por Felca, o canal de Bel foi retirado do ar. A plataforma justificou que o conteúdo não estava condizente com suas respectivas políticas.

Outro caso notável é o do canal Maria Clara e JP com quase 50 milhões de seguidores. Eles começaram crianças e hoje são adolescentes; além de terem uma marca de brinquedos própria, fazem anúncios para diversas marcas direcionados para crianças, o que é proibido no Brasil.

Talvez por conta disso, colocam em seus canais que alguns dos conteúdos “não contém promoção paga”. Há cerca de seis anos, eles se mudaram para os Estados Unidos para produzir seus conteúdos, após diversas denúncias de seus vídeos ao Ministério Público sobre conteúdos que infringem as leis brasileiras. 

No Brasil, há dois regramentos instituídos em leis que protegem as crianças no trabalho infantil. O primeiro está no Art. 149 do próprio ECA, que estabelece autorização de uma autoridade judiciária para que crianças e adolescentes participem de ensaios, estúdios cinematográficos, rádio e televisão. Tal regra, que mesmo por meio de espelhamento poderia ser levada em conta, não tem se aplicado aos influenciadores digitais mirins.

Já a Constituição proíbe o trabalho para menores de 16 anos, admitindo-se apenas a condição de aprendiz a partir dos 14. Portanto, qualquer atividade laboral abaixo dessas idades é considerada trabalho infantil. Além disso, há tanto a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) quanto a posição do Conselho Nacional de Autorregulamentação Públicitária (Conar), que vetam a publicidade dirigida de crianças para crianças.

Apesar de leis já vigentes, que infelizmente não são suficientes para coibir a atuação das plataformas — cujo modus operandi parece ser o de ignorar a realidade local —, na Câmara Federal está em tramitação o Projeto de Lei 2310/25, da deputada Duda Salabert (PDT), que pretende tratar o assunto de forma mais direta.

Se já é consenso que as crianças devem ter regras para estarem nesse espaço, por que as crianças que estão sendo exploradas por marcas e por esse negócio das plataformas estão ficando de fora?

*Viviane Tavares é jornalista, doutoranda em Tecnologias Digitais da Comunicação e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Autor

  • Redação Uberlândia no Foco

    O Uberlândia no Foco é um portal de notícias localizado na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, que tem como objetivo informar a população sobre os acontecimentos importantes da região do Triângulo Mineiro e do país. Fundado por Rafael Patrici Nazar e Sabrina Justino Fernandes, o portal busca ser referência para aqueles que buscam informações precisas e atualizadas sobre a cidade e a região. Nosso objetivo é cobrir uma ampla gama de assuntos, incluindo política, economia, saúde, educação, cultura, entre outros. Além disso, visamos abordar também, questões relevantes a nível nacional, garantindo assim que seus leitores estejam sempre informados sobre os acontecimentos mais importantes do país. Nossa equipe é altamente capacitada e dedicada a fornecer informações precisas e confiáveis aos seus leitores. Eles trabalham incansavelmente para garantir que as notícias sejam atualizadas e verificadas antes de serem publicadas no portal. Buscamos oferecer aos leitores uma plataforma interativa, na qual possam compartilhar suas opiniões e participar de debates sobre os assuntos mais importantes da cidade e da região. Isso torna o portal uma plataforma democrática, onde todas as vozes podem ser ouvidas e valorizadas. Não deixe de nos seguir para ficar por dentro das últimas atualizações e notícias relevantes. Juntos, temos uma grande caminhada pela frente.

0 Votes: 0 Upvotes, 0 Downvotes (0 Points)

Leave a reply

Loading Next Post...
Seguir
Sign In/Sign Up Sidebar Search
COLUNISTAS
Loading

Signing-in 3 seconds...

Signing-up 3 seconds...