Atos para abolir ordem democrática devem ser punidos


Opinião

Tem-se debatido no Brasil a plausibilidade da proposta de anistia aos acusados em ações penais decorrentes dos eventos ocorridos entre o pleito presidencial de 2022 e a invasão à Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. Dentre esses processos, destaca-se a Ação Penal nº 2.668, cujos réus consistem no ex-presidente Jair Bolsonaro e em generais. Do ponto de vista constitucional, surge-se o debate acerca da conformidade ou não da proposta de anistia com a Carta Magna.

Joédson Alves/Agência Brasil

manifestação em defesa da anistia dos condenados pelo 8 de janeiro

Primeiramente, convém mencionar que a própria Constituição impôs limites à concessão de anistia, o fazendo de forma expressa no artigo 5º, inciso XLIII, ao dispor que são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo e os crimes hediondos. No tocante aos crimes contra o Estado democrático de Direito, o texto constitucional dispõe no inciso seguinte (XLIV) do supracitado artigo que eles são inafiançáveis e imprescritíveis, silenciando quanto ao resto.

Ora, segundo uma interpretação textualista, então, a carta magna permitiria a anistia aos crimes contra o Estado democrático de Direito, pois não os arrolou entre os expressamente vedados, como o fez com a tortura e outros. Por essa ótica, seria amplamente possível conceder anistia àqueles que tentaram destruir a ordem democrática.

Entretanto, a análise textualista encontra-se há muito superada. Como ensina José Afonso da Silva (2014, p. 80; 156; 883), a constituição é um “todo unitário”, e não qualquer todo, mas um “todo harmônico”. Isso porque, muito além de simplesmente dispor previsões normativas, o texto constitucional forma um “conjunto de valores”, ou, melhor dizendo, um conjunto axiológico resultante de uma decisão política fundamental realizada pelo constituinte, a qual deu início a uma nova ordem constitucional.

Luís Roberto Barroso (2008, p. 46-49) acrescenta que no constitucionalismo contemporâneo o texto constitucional deixa de ser meramente programático e, para além de adquirir efetividade, ganha também um “efeito expansivo” que se irradia pelo ordenamento jurídico. Este deve pautar-se obrigatoriamente pelos princípios e valores consagrados pelo constituinte, não existindo mais em um vácuo axiológico.

Spacca

Pressuposto lógico

Por conseguinte, a análise do tema em questão não pode ser realizada sem antes examinar-se os valores adotados pela carta de 1988. Esta consagra já no artigo 1º que o Brasil é um Estado democrático de Direito, possuindo entre seus fundamentos a cidadania e o pluralismo político. São esses os principais valores que constituem o Estado brasileiro desde 1988, devendo o ordenamento jurídico ser necessariamente interpretado à luz deles.

Ao realizar-se isso, chega-se facilmente à conclusão de que a anistia a crimes contra o Estado democrático de Direito é inconstitucional, pois caso contrário a Carta Magna estaria prevendo um meio legal de autorizar condutas que visam abolir a própria ordem constitucional por ela fundada. Essa interpretação rompe com o todo unitário e harmônico que deve ser a Constituição, sendo impensável imaginar que ela criaria um Estado democrático de Direito e ao mesmo tempo aceitaria a existência de um meio legal que possibilitasse tentar aboli-la.

Por evidente, a constituição não prevê esse meio legal, pois o Estado democrático de Direito não tolera condutas que visem sua abolição, sendo esse um pressuposto lógico, reforçado pela consagração, no artigo 1º, da soberania popular, da cidadania do pluralismo político como fundamentos da República. Na hipótese da constitucionalidade da anistia, os aludidos fundamentos seriam gravemente violados, com a deposição de um governo eleito e a instituição de um regime autoritário, não-eleito e diametralmente oposto à constituição.

Destarte, os incisos XLIII e XLIV do artigo 5º devem ser analisados à luz dos princípios fundantes da ordem constitucional, e não de forma meramente textual em um vácuo axiológico. Ao interpretar-se a Constituição como um todo unitário, a conclusão não pode ser outra que não a exposta, no sentido de que os atos tendentes a abolir a ordem democrática devem ser necessariamente punidos, pois violam os mais basilares valores constitucionais.

 


Referências

BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição Brasileira de 1988: o estado a que chegamos. Cadernos da Escola de Direito, Curitiba, Centro Universitário Autônomo do Brasil, v. 1, n. 8, p. 183-225, jan./jul. 2008.

SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

Autor

  • Redação Uberlândia no Foco

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