
Opinião
O direito à defesa, previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição de 1988, é elemento essencial do Estado democrático de Direito e manifesta-se de forma mais intensa no processo penal, que representa o espaço institucional de contenção do poder punitivo estatal. Em conjunto com o contraditório, essa garantia assegura não apenas o direito do acusado de ser informado sobre os atos processuais, mas também sua participação efetiva na formação da decisão judicial. Entretanto, o exercício pleno da ampla defesa não pode ser confundido com um direito ilimitado ou destituído de responsabilidades éticas, pois encontra balizas necessárias nos princípios da segurança jurídica, da lealdade processual e da boa-fé objetiva.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, recentemente, ao julgar o Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 256.613/PR, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, reafirmou os limites do exercício da defesa ao decidir pela impossibilidade de realização do interrogatório por videoconferência de réu que se encontrava em situação de fuga. A corte aplicou o artigo 565 do Código de Processo Penal, segundo o qual a parte não pode se beneficiar de nulidade que ela própria tenha provocado, reforçando a máxima do pas de nullité sans grief. Reconheceu-se, assim, que a ausência de interrogatório do acusado decorreu de sua própria conduta, não constituindo causa de nulidade processual.
Esse entendimento revela que o contraditório, em sua concepção contemporânea, não se restringe ao direito de ser ouvido, mas abrange também o direito de influenciar a decisão judicial e o dever de colaborar para a sua legitimidade. A defesa, nesse sentido, não se reduz à formulação de teses absolutórias ou ao uso de incidentes processuais meramente protelatórios, mas deve ser exercida como garantia institucional que protege o indivíduo e, ao mesmo tempo, reforça a legitimidade do processo penal como instrumento de pacificação social. O exercício abusivo da defesa, por outro lado, compromete a regularidade procedimental e ameaça a integridade do sistema de justiça.
A decisão do STF também se insere em um quadro mais amplo de afirmação da segurança jurídica como valor estruturante do processo penal. A previsibilidade, a estabilidade e a coerência das decisões judiciais são condições indispensáveis para a confiança social no sistema de justiça. Se fosse admitido que o réu em situação de fuga pudesse exigir o interrogatório remoto, abrir-se-ia precedente perigoso de estímulo a condutas contraditórias e de enfraquecimento da autoridade das normas processuais. A corte, ao vedar tal possibilidade, reforçou que a segurança jurídica exige respeito à legalidade e que as garantias constitucionais não podem ser convertidas em instrumentos de subversão do devido processo legal.
Outro eixo central da fundamentação do julgado é o dever de lealdade processual, princípio implícito ao processo penal, derivado da boa-fé objetiva e da ideia de cooperação entre os sujeitos processuais. Esse dever impõe que acusação, defesa e magistratura atuem de forma ética, transparente e orientada pela finalidade de realização da justiça. A conduta do réu foragido, ao tentar transformar em nulidade processual a consequência de sua própria decisão de descumprir ordem judicial, afronta frontalmente esse princípio. A lealdade, nesse contexto, não constitui apenas uma exigência moral, mas uma imposição jurídica que integra o devido processo legal, impedindo que garantias constitucionais sejam utilizadas como pretexto para obstrução da marcha processual.
Spacca
O caso em análise demonstra, portanto, que o direito à defesa não se traduz em liberdade irrestrita de atuação processual. Sua legitimidade depende da observância de parâmetros éticos e jurídicos que assegurem a integridade do processo e a regularidade da jurisdição penal. A ampla defesa é inegociável, mas deve ser exercida em conformidade com valores constitucionais que preservem o equilíbrio entre a proteção do acusado e a efetividade da persecução penal. A atuação processual que desrespeita esses limites — como a alegação de nulidade fundada em ato que o próprio réu deu causa — não apenas viola o dever de lealdade, mas compromete a segurança jurídica e a confiança da sociedade no sistema de justiça.
Assim, ao reafirmar que a situação não constitui causa de nulidade nos termos do artigo 565 do CPP, o Supremo consolida uma compreensão de processo penal democrático em que o exercício das garantias individuais deve ser compatibilizado com a estabilidade do sistema e com a exigência de cooperação entre os sujeitos processuais. A decisão projeta-se como marco relevante da jurisprudência, pois demonstra que a ampla defesa, embora essencial e intangível, não pode ser desvirtuada em instrumento de abuso. O processo penal constitucional exige uma atuação responsável, pautada na boa-fé e na lealdade, capaz de assegurar não apenas a proteção do acusado, mas também a credibilidade, a previsibilidade e a legitimidade do sistema de justiça criminal.