Aliás, o contrário parece ter acontecido: as pessoas que carregavam muitos anticorpos (moléculas de defesa do organismo) contra dengue tinham mais chances de evitar a nova moléstia. Ou seja, na prática, ter tido dengue várias vezes antes conferiu alguma proteção contra a zika. Os resultados estão descritos em artigo que acaba de ser publicado no periódico especializado Science.
“Estudos epidemiológicos como esse são caros e exigem tempo para dar frutos. Estava mais ou menos claro que só entenderíamos melhor o que estava acontecendo no caso da zika quando a epidemia enfraquecesse, mas tudo indica que a doença veio para ficar no Brasil, então é importante compreendê-la”, disse à Folha o virologista Mauricio Lacerda Nogueira, coautor da pesquisa e professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. A coordenação do trabalho coube a Federico Costa, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) da Bahia, e a Albert Ko, da Escola de Saúde Pública da Universidade Yale, nos Estados Unidos
Os especialistas usam a sigla ADE (potencialização dependente de anticorpos) para descrever o fenômeno que poderia definir uma infecção agravada por outra infecção prévia. O processo de ADE parece estar por trás do risco que existe quando alguém é acometido por duas formas diferentes do vírus da dengue, por exemplo. Na segunda infecção, a possibilidade de sintomas sérios, que podem levar à morte, torna-se maior.
Nesses casos, o que parece acontecer é que os anticorpos produzidos pelo organismo durante a primeira infecção são capazes de se conectar com a nova forma do vírus, mas não conseguem neutralizá-lo. De quebra, atuam como “cavalo de Troia”, levando o vírus para dentro das células. Como o vírus da zika é um parente próximo do causador da dengue (ambos pertencem ao grupo dos flavivírus), a possibilidade de que algo assim acontecesse existia. E os dados para analisar diretamente o fenômeno também estavam disponíveis, já que Albert Ko e seus colegas têm um projeto de pesquisa em saúde pública de longo prazo em Salvador (o médico de Yale, aliás, morou no Brasil durante 15 anos).
Graças a isso, a equipe analisou tanto a presença de anticorpos contra o vírus da zika, que indicam a ocorrência de uma infecção pelo patógeno, quanto a de anticorpos contra dengue (num subgrupo menor dos moradores de Pau da Lima, totalizando 642 pessoas). A primeira conclusão importante do levantamento é que o novo vírus realmente se espalhou com força tremenda pela população em 2015. Eles estimam que cerca de 70% dos moradores da área tiveram zika nesse período (trata-se de uma estimativa, e não de uma certeza, porque a análise dos anticorpos tem certa margem de erro).
Do subgrupo de 642 pessoas, 86% apresentavam ao menos alguns anticorpos contra dengue. Isso não foi suficiente para tornar essas pessoas, como um todo, imunes à zika- mas, quanto mais alta a quantidade de anticorpos antidengue em seu organismo, menor a probabilidade de elas também terem sido infectadas por zika.
Quando esse subgrupo é dividido em três partes conforme o nível de anticorpos no organismo, o terço de pessoas com mais anticorpos contra dengue tinha chance 44% mais baixa de ter zika quando comparada ao terço de pessoas com menos anticorpos, ou a quem não tinha nenhuma defesa contra a dengue.
VACINA
Segundo Ko, o resultado é uma boa notícia para os testes atuais e futuros de vacinas contra a dengue. Como o papel das vacinas é justamente estimular a ação do sistema de defesa do organismo e a produção de anticorpos, havia o temor de que eles pudessem causar o efeito não intencional de potencializar a zika. “Essa seria a pior situação possível, considerando os defeitos congênitos, como a microcefalia, que a doença pode causar durante a gestação”, destaca ele.
E os dados talvez ajudem a explicar, de forma quantitativa, porque milhares de casos de microcefalia apareceram no país, e em especial no Nordeste, após o auge da epidemia, com um retorno posterior ao patamar esperado do problema. “A taxa incrivelmente alta de infecção em comunidades como a do nosso estudo certamente foi a principal razão”, diz Ko.
“Se a proporção de 70% da população for mesmo representativa, pense no que isso representa só para o Nordeste como um todo”, acrescenta Mauricio Nogueira. Seriam 40 milhões de pessoas. “Com tantos casos, efeitos relativamente raros da infecção começam a ficar visíveis.”
Após a primeira infecção, tudo indica que a pessoa se torna imune a novos ataques do vírus da zika, o que impediria que o fenômeno se repetisse com a mesma intensidade nos próximos anos. Com o passar do tempo, porém, após o nascimento de pessoas cujo organismo não teve contato o patógeno, cria-se um reservatório de possíveis vítimas. É por isso que é importante estar preparado para futuros ataques.