Entre Acordes e Demônios: O Pacto que Nunca Foi

Darlene GarcêzGeral5 months ago43 Views

Diz a lenda que, em uma noite qualquer dos anos 1930, um jovem músico negro foi até uma encruzilhada no sul dos Estados Unidos. Lá, teria encontrado o próprio diabo e, em troca de sua alma, recebeu o dom de tocar violão como ninguém. Esse homem era Robert Johnson, e sua história atravessou o tempo envolta em mistério, magia e — se olharmos mais de perto — preconceito.

 

O homem por trás do mito

Robert Johnson nasceu no Mississippi em 1911, viveu pouco (morreu aos 27 anos), gravou apenas 29 músicas, e mesmo assim se tornou um dos maiores nomes da história do blues. Seu jeito de tocar era tão surpreendente, sua musicalidade tão sofisticada, que muitos na época preferiram acreditar que havia algo “sobrenatural” ali.

Mas o que essa lenda realmente revela?

Por que, ao invés de simplesmente admirar seu talento, inventaram que ele havia feito um pacto com o diabo?

 

O blues, o racismo e o medo do talento negro

Nos Estados Unidos segregados da década de 1930, a ideia de que um homem negro — pobre, vindo do campo — pudesse atingir um nível artístico tão elevado simplesmente não era aceitável para muitos. A genialidade de Johnson era vista como “ameaçadora”. Era mais fácil dizer que ele estava “possuído”, ou que sua música era “do demônio”, do que reconhecer seu gênio.

Essa não foi uma exceção. Durante muito tempo (e até hoje), artistas negros foram constantemente desvalorizados, perseguidos ou tiveram suas criações apropriadas sem crédito. E tudo isso com o pano de fundo de uma sociedade que associa talento à cor da pele, como se a genialidade tivesse tom definido.

 

Outros ecos na cultura pop

Infelizmente, a história de Robert Johnson não é única. Veja alguns exemplos:

  • Sister Rosetta Tharpe, guitarrista gospel negra dos anos 1940, tocava com uma energia que anos depois seria chamada de “rock and roll”. Muitos a consideram a verdadeira mãe do rock, mas seu nome foi praticamente apagado da história, enquanto artistas brancos levaram o crédito.
  • Josephine Baker, dançarina e cantora americana que brilhou na França, foi rejeitada em seu próprio país por ser negra. Mesmo sendo uma estrela internacional, os EUA a viram com desconfiança por décadas.
  • Little Richard, que moldou os primórdios do rock com sua energia explosiva, foi influente para Beatles, Bowie e Prince — mas sempre teve que lutar pelo seu espaço em uma indústria que preferia versões “embranquecidas” de sua música.
  • No cinema, música e moda, é comum que inovações vindas da cultura negra só sejam valorizadas quando reproduzidas por pessoas brancas. O termo para isso é apropriação cultural — quando a estética, linguagem ou expressão de um povo oprimido é usada por outro grupo, sem o devido reconhecimento ou respeito.

 

E se o “pacto com o diabo” fosse uma metáfora?

Hoje, muitas pessoas olham para a história de Robert Johnson de outro jeito. Talvez o tal “pacto” fosse a dor que ele carregava por ser um artista negro num mundo que o recusava. Talvez o preço de sua arte tenha sido a marginalização, o apagamento e a solidão. Talvez o diabo não estivesse numa encruzilhada — mas nas estruturas racistas que tentavam silenciar sua voz.

 

 

A importância de contar essas histórias

 

Quando assistimos a filmes como Sinners, estrelado por Michael B. Jordan, que se inspira diretamente nesse mito, estamos diante de uma oportunidade: repensar as histórias que nos contaram. Reescrever os mitos, dar nome aos verdadeiros gênios e refletir sobre o que ainda precisa mudar.

Contar a história de Robert Johnson com os olhos de hoje é mais do que fazer justiça: é recuperar a alma da música, da arte e de todos os que vieram antes de nós, tocando, cantando e criando — mesmo com o mundo tentando calá-los.

 

 

Autor

0 Votes: 0 Upvotes, 0 Downvotes (0 Points)

Leave a reply

Loading Next Post...
Seguir
Sign In/Sign Up Sidebar Search
COLUNISTAS
Loading

Signing-in 3 seconds...

Signing-up 3 seconds...