veja a história da marca chinesa, que nasceu fazendo geladeiras

Mal estreou no Brasil, a Geely já ocupa as manchetes do noticiário automotivo. A marca chinesa adquiriu 26,4% das operações da Renault no Paraná para viabilizar a produção local de seus modelos. E, antes mesmo de fabricar no país, emplacou 985 unidades em novembro, conquistando a vice-liderança do mercado de elétricos — atrás apenas da BYD. Além disso, o compacto Geely EX2 já supera as vendas do BYD Dolphin. A companhia também anunciou que pretende ganhar espaço na Europa, usando o Reino Unido como trampolim.

Ainda pouco conhecida no Brasil, a Geely está no top 3 das fabricantes de automóveis na China. Essa holding 100% privada hoje controla a Volvo, a Lotus e detém 9,6% da Mercedes-Benz. Somente no ano passado, produziu 3,3 milhões de veículos. O mais curioso é que esse conglomerado industrial foi criado, nem faz tanto tempo assim, por um jovem com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.

A história da Geely se confunde com a trajetória de seu fundador, Li Shufu, um dos personagens mais improváveis da indústria automobilística moderna. Filho de agricultores, ele nasceu numa vila montanhosa em Taizhou, província de Zhejiang, em 1963. Quando garoto, passava as férias de verão trabalhando como vaqueiro para ganhar uns trocados.

Em 1978, a Terceira Sessão Plenária do Partido Comunista Chinês estabeleceu o desenvolvimento econômico como prioridade, orientando o país rumo à modernização socialista. Foi o ponto de partida para o período de reformas e abertura que transformaria a China nas décadas seguintes, promovendo o crescimento e a maior integração ao comércio mundial. Em meio a esse clima de mudanças no país, o adolescente Li já não tinha mais paciência para os estudos do ensino médio. Seu corpo frequentava a escola, mas a mente estava em outro lugar: queria começar a trabalhar, ter o próprio negócio.



O jovem Li Shufu e sua bicicleta

Foto de: Reprodução

Pediu ao pai que lhe emprestasse dinheiro para comprar uma câmera fotográfica. Pedalando a bicicleta da família e levando a tiracolo sua Hai’ôu (“Gaivota”, uma espécie de Rolleiflex chinesa), ia de rua em rua, perguntando às pessoas se queriam tirar fotos. Graças ao seu serviço entusiasmado e à qualidade razoável das imagens, rapidamente recuperou o investimento.

Logo conseguiu abrir um pequeno estúdio. Devido aos recursos limitados, projetou e construiu quase todos os equipamentos, incluindo câmeras de grande formato, iluminação e acessórios. Mas o mercado estava se abrindo, e ele logo trocou a fotografia por um negócio mais lucrativo: separar cobre, prata e ouro de eletrodomésticos velhos, num pioneiro trabalho de reciclagem. Quando outros chineses começaram a fazer o mesmo, a concorrência cresceu e o custo das peças usadas aumentou. E lá foi o irrequieto Li em busca de uma nova atividade.



Foto de: Reprodução

A China urbanizava-se rapidamente, e ter uma geladeira era símbolo de prosperidade. Com o dinheiro do estúdio e dos metais preciosos, Li montou, juntamente com os irmãos, uma pequena fábrica de peças para refrigeradores. Tiveram de se mudar várias vezes, sempre para endereços emprestados, até conseguirem alugar um galpão modesto e obter uma licença municipal. Recrutaram funcionários e desenvolveram produtos. Ganharam boa fama e passaram a fornecer evaporadores, condensadores e filtros a quase todos os fabricantes de geladeiras da China.

A ideia fez tanto sucesso que Li expandiu a empresa, começando a produzir geladeiras e freezers completos. Em 1986 — aos 23 anos — fundou a Fábrica de Refrigeradores Beijihua (“Flor do Ártico”, em chinês). Este é considerado o início oficial da Geely, cujo nome em mandarim significa “auspicioso”, “favorável” ou “propício” (a pronúncia é algo como “Chili”).



A primeira fábrica de peças para geladeiras, nos anos 80

Foto de: Reprodução

O novo negócio cresceu de maneira impressionante, chegando a valer centenas de milhões de yuans. Contudo, ventos políticos mudaram o curso do negócio: em 1989, o governo central passou a regular as licenças de produção de refrigeradores, e a Flor do Ártico ficou de fora. Desentendimentos entre os sócios fizeram com que Li se afastasse da fábrica e, enfim, entrasse na universidade. Primeiro, cursou Engenharia de Gestão e, posteriormente, fez um mestrado em Engenharia Mecânica.

Paralelamente aos estudos, montou uma fábrica de painéis de metal para uso em arquitetura e decoração. Essa atividade, aliás, é até hoje uma das principais fontes de lucro do Grupo Geely. Por um tempo, Li Shufu também tentou a sorte no mercado imobiliário, sem muito êxito. Seu objetivo, no entanto, já estava definido: fabricar automóveis, algo praticamente proibido a empresas privadas numa China onde o setor era rigidamente controlado por estatais.



O Geely número 1 – Mercedes de fibra com mecânica FAW Hongqi Audi 100

Foto de: Reprodução

Como primeiro passo, Li dedicou-se às motocicletas, um segmento em forte expansão. Em 1994, a Geely entrou no mercado de scooters e lançou a Huatian, baseada na Honda CH-125 Spacy. O modelo rapidamente obteve grande sucesso, permitindo ao empresário acumular capital e experiência industrial.

Pouco tempo depois, Li retomou a obsessão de construir um automóvel próprio — e decidiu começar pelo topo. Comprou um Mercedes Classe E W210 (aquele dos quatro faróis ovais) e o desmontou peça por peça, tentando compreender seus princípios e sua tecnologia.



O Geely número 1 – Mercedes de fibra com mecânica FAW Hongqi-Audi 100

Foto de: Reprodução

Daí fez uma uma carroceria de fibra de vidro que clonava o visual do Mercedes e adaptou-a sobre uma plataforma e a mecânica do Audi 100 chinês (produzido pela FAW Hongqi). Esse protótipo, que ficaria conhecido como “Geely Yi Hao”, ou “Geely Número Um”, chegou a circular por Taizhou e virou assunto nos jornais locais. Sua qualidade de construção, porém, era péssima. Na época, havia grandes dificuldades para encontrar mão de obra qualificada na China. A partir de 1995, Li Shufu viajou por todo o país em busca de fabricantes dispostos a participar do projeto, mas não encontrou qualquer interessado.

Sem licença, mas determinado a entrar no setor automotivo, Li descobriu que, na cidade de Deyang, na província de Sichuan — do outro lado da China, a 2.300 km de distância — havia uma pequena fábrica de caminhões falida que pertencia a um… presídio!



Os caminhões fabricados na prisão de Deyang

Foto de: Reprodução

A Deyang No.95 — era esse o nome da unidade de trabalho prisional — já não produzia veículos havia alguns anos, mas ainda detinha o valioso registro legal de produção. Em troca de um investimento de 24 milhões de renminbi, Li adquiriu 70% da operação, criando a Sichuan Geely Boyin Automotive Company. Após a morte do diretor da prisão, comprou o restante da fábrica e transferiu todo o equipamento para Taizhou, consolidando a capacidade industrial que tanto buscava.

Com a estrutura mínima montada, abandonou a ideia de fabricar um sedã de luxo e adotou um caminho mais pragmático: produzir carros simples e baratos. O modelo utilizado como base foi o Tianjin Xiali, uma versão chinesa — autorizada — do Daihatsu Charade.



O primeiro carro Geely Haoqing saiu da linha de produção em 1998

Foto de: Reprodução

A engenharia reversa permitiu criar o Geely Haoqing, lançado em agosto de 1998. Era um frankenstein sobre rodas: praticamente um clone dos Charade e Xiali, mas com grade que lembrava a Mercedes, motor Toyota 8A produzido na China pela Tianjin FAW e transmissão da Fiat.

Dos 100 primeiros exemplares fabricados, apenas 20 foram vendidos. Havia falhas de vedação tão graves que o próprio Li testava os carros sob chuva para identificar vazamentos. Em dias ensolarados, entrava poeira. Freios e sistema elétrico também apresentavam problemas recorrentes. Num acesso de raiva, o empresário sucateou o lote inicial.



O Belo Leopardo, primeiro esportivo feito na China

Foto de: Reprodução

Esse início foi muito difícil, e a empresa operou em brechas regulatórias até obter, em 2001, a licença oficial definitiva, que transformou a Geely na primeira fábrica de automóveis privada reconhecida pelo governo chinês.

Nos anos 2000, a Geely encontrou seu espaço vendendo carros extremamente baratos em um mercado onde Volkswagen, Toyota e importados eram bens de luxo. Seus veículos não tinham refinamento e acumulavam notas ruins de segurança (incluindo um zero em crash test na Rússia), mas desempenharam papel social importante ao democratizar o automóvel para milhares de chineses.



Geely Meiren Bao, o Belo Leopardo – primeiro esportivo chinês

Foto de: Reprodução

Li Shufu também lançou um cupê, o Geely Meiren Bao (“Belo Leopardo” em chinês), o primeiro esportivo fabricado em série na China. O empresário sabia, no entanto, que a estratégia de preços baixos ou carrocerias chamativas tinha prazo de validade. Para competir globalmente, iria precisar de tecnologia, prestígio e engenharia de ponta.

A grande virada aconteceu em 2010, quando a Ford, fragilizada pela crise financeira de 2008, pôs a Volvo Cars à venda. Muitos analistas duvidaram que uma fabricante chinesa sem tradição pudesse assumir uma marca ocidental renomada e símbolo mundial de segurança.



Geely Merrie _2000–07 – obsessão pela grade de Mercedes

Foto de: Reprodução

Li Shufu ignorou os comentários e comprou a Volvo por US$ 1,8 bilhão. Ao contrário das expectativas, manteve a gestão sueca com total autonomia, repetindo publicamente a frase que se tornaria sua filosofia de integração: “A Geely é a Geely, a Volvo é a Volvo”. O aporte financeiro chinês permitiu à Volvo desenvolver plataformas mais modernas, como SPA (2014) e CMA (2017), renovar a linha e recuperar a rentabilidade. E a Geely — claro — passou a ter acesso à engenharia avançada que impulsionaria seus futuros produtos.

Com a Volvo revitalizada, o grupo acelerou sua expansão internacional. Em 2013, salvou a The London Taxi Company, a icônica fabricante dos black cabs londrinos, hoje conhecida como London EV Company (LEVC).



De copiador de Mercedes, Li tornou-se o maior acionista individual da empresa alemã

Foto de: Reprodução

Em 2017, assumiu o controle da Lotus e parte da Proton, dando início à modernização da tradicional marca britânica de esportivos. No ano seguinte, Li Shufu comprou 9,69% da Daimler AG (hoje Mercedes-Benz Group), fechando um ciclo irônico para quem, duas décadas antes, começou no ramo desmontando clandestinamente um Classe E na garagem.

O conglomerado Geely adquiriu ainda 50% da Smart e criou marcas como a Lynk & Co, para a lacuna entre o mercado de massa e o segmento de luxo; a Zeekr, voltada a veículos elétricos premium; e a Polestar, divisão de performance elétrica em parceria com a Volvo. Plataformas e tecnologias passaram a ser compartilhadas, sustentando desde SUVs elétricos de alto desempenho da Lotus até os novos Smart produzidos na China.



Foto de: Reprodução

Passados 43 anos da primeira câmera Gaivota de Li Shufu, o Zhejiang Geely Holding Group (ZGH) tornou-se uma das mais influentes forças automotivas do planeta. A empresa que fazia evaporadores de geladeira num galpão da zona rural hoje é referência em inovação, engenharia e expansão global.

E sabe o “Geely Número Um”, o clone de fibra de vidro do Classe E? O único exemplar passou anos abandonado num canto qualquer da fábrica de Taizhou e foi destruído por ordem do próprio Li, que considerou aquela primeira tentativa de fazer um carro um “esforço tolo”.

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  • Redação Uberlândia no Foco

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