O direito da criança vítima de ter um advogado

Certa vez, no início de minha carreira na magistratura, ouvia uma testemunha em uma audiência previdenciária que tremia descontroladamente. Era um senhor com os seus cinquenta e poucos anos e estava muito nervoso. Ao final do ato, ele me perguntou bastante preocupado: “acabou? Eu não serei preso?”

Respondi-lhe que não, que ele era apenas uma testemunha em um processo cível. Ele me disse, então, que quando foi intimado a comparecer no fórum ficou com medo porque não sabia exatamente o que poderia lhe acontecer.

Esse episódio me faz pensar no depoente criança ou adolescente: com ainda mais razão, diante da sua pouca experiência, o depoente infantojuvenil, ao ser convidado para ir ao fórum, pode se sentir assustado, ansioso e repleto de dúvidas: afinal, o que esperam de mim nesse lugar?

Esses sentimentos tendem a se agudizar ainda mais quando se trata de uma criança ou adolescente que foi vítima de uma violência e, portanto, chega àquele lugar (digo: ao fórum, à sala de audiência) ferido, vitimizado.

O depoimento especial (DE) previsto na Lei nº 13.431/2017 é um procedimento adaptado que visa justamente tornar a experiência da criança e do adolescente que entra em contato com o sistema de justiça mais acolhedora, menos traumática e não-revitimizante. Porém, a adaptação do rito processual, por si só, é insuficiente.

Não basta tornar a oitiva em si mais empática e humanizada. A criança tem dúvidas e tem direitos. Há fatos importantes que se sucedem antes da audiência e poderão ser necessários atendimentos após o ato. Em outras palavras: o direito à participação não se esgota apenas na audiência do depoimento especial, mas repercute antes e depois desse ato processual.

Durante todo esse percurso, isto é, antes, durante e depois da audiência judicial, a criança ou o adolescente que depõe em juízo tem o direito de receber informação e aconselhamento jurídico, bem como de ter as suas pretensões representadas perante o Poder Judiciário. Para defender especificamente os direitos da criança vítima e possibilitar o seu exercício, inclusive zelando pelo respeito de sua dignidade, é que entra em cena um importante personagem: o advogado (ou defensor) da criança (no inglês: child’s lawyer).

Spacca

A transição paradigmática que elevou crianças da condição de meros objetos de tutela para a de sujeitos de direitos foi, sem dúvida, um dos maiores avanços civilizatórios dos últimos anos. Um dos pilares desta nova arquitetura jurídica é o direito à participação, consagrado no artigo 12 da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, que garante a toda criança a oportunidade de ser ouvida em processos judiciais que lhe afetem.

O depoimento especial, instituído pela Lei nº 13.431/2017, é uma sofisticada ferramenta processual que materializa esse direito. Contudo, para que a participação seja efetiva e não meramente simbólica e figurativa, a voz da criança precisa ser qualificada por uma representação técnica, autônoma, comprometida e capacitada: um defensor que atue como o seu advogado.

Este artigo se debruça sobre o direito fundamental da criança vítima de ter os seus próprios interesses defendidos por um profissional jurídico habilitado e capacitado, que lute exclusivamente pela defesa de seus direitos. A assistência jurídica à criança vítima ou testemunha de violência não é uma faculdade discricionária, mas um mandamento legal indeclinável.

Defendemos que essa função, por sua natureza protetiva e sua base na vulnerabilidade, cabe primordialmente à Defensoria Pública, de forma universal e incondicionada. Analisaremos, por fim e mais uma vez, o paradoxal cenário do estado de São Paulo, onde, apesar da existência de uma proposta institucional avançada e corajosa vinda de seu próprio núcleo especializado, entraves burocráticos ainda impedem a plena efetivação desse direito, em um descompasso que reclama por correção.

Representação jurídica como condição para uma efetiva participação

O direito de ser ouvido em procedimento adaptado, o depoimento especial, é a materialização processual do direito à participação. Contudo, a participação não se esgota no ato de falar. Para ser genuína, ela pressupõe a integral compreensão e a real capacidade de influência. Uma criança, por mais articulada que seja, não possui o conhecimento técnico para navegar a complexidade de um processo judicial, compreender o alcance de seus direitos ou as implicações de cada ato.

Nem mesmo os adultos leigos (aqueles sem formação superior em Direito) possuem tais competências (vide o exemplo citado no início da testemunha na audiência previdenciária). É aqui que a figura do advogado da criança (child’s lawyer) se torna indispensável. Ele atua como um “tradutor” técnico e um guardião dos direitos processuais, garantindo que a voz da criança não apenas ecoe, mas ressoe de forma eficaz perante o juízo no qual tramita um processo judicial de seu interesse e cuja decisão pode lhe afetar.

A Lei nº 13.431/2017 é inequívoca ao prever, em seu artigo 5º, incisos V e VII, o direito de a criança “receber informação adequada (…) sobre (…) representação jurídica” e de “receber assistência qualificada jurídica e psicossocial especializada”. Ou seja: a lei prevê, expressamente, o direito da criança a ter um profissional que a represente e lhe dê assistência na acepção jurídica. Esse profissional é o advogado.

A Resolução nº 299/2019 do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 18, §1º, reforça que “o magistrado deverá velar pela assistência jurídica por defensor público ou advogado conveniado ou nomeado, se assim desejar a criança e/ou adolescente”. Este robusto plexo normativo estabelece um direito subjetivo da criança, e não uma liberalidade do sistema.

Como tive a oportunidade de sustentar em artigo científico, essa assistência jurídica é autônoma e específica, pertencendo à criança independentemente da representação de seus pais ou responsáveis adultos, o que é essencial em casos de violência intrafamiliar, onde o conflito de interesses entre pais e filhos pode ser patente. Vale dizer: trata-se de um advogado da criança (dela e só dela) e não de um advogado dos pais que também atuará, cumulativamente, a favor do filho menor.

O papel deste advogado é distinto daquele exercido pelo promotor de justiça, membro do Ministério Público, que representa o interesse da sociedade; do defensor do réu, que representa o acusado; e até mesmo dos advogados dos pais. Sua lealdade é exclusiva para com seu cliente: a criança. Sua função não é a de um tutor que age segundo o que entende ser o “melhor interesse”, mas a de representar a vontade singular manifestada pela criança, após orientá-la em linguagem acessível sobre as opções e consequências. Ele deve se fiar preponderantemente pelo “interesse manifesto” da criança.

Nesse mister, no bojo do procedimento do depoimento especial, ele fiscaliza a legalidade dos atos (p.ex. verificando se o entrevistador forense utiliza as diretrizes técnicas do PBEF e denunciando quando faz questionamentos sugestivos), zela pelo respeito absoluto ao direito ao silêncio, formula perguntas pertinentes (ele participa do ato, estando presente na sala de audiências, ao lado do juiz, do promotor e do advogado do réu e pode, no tempo oportuno, fazer perguntas ao seu cliente, por intermédio do entrevistador forense) e, fundamentalmente, assegura que a opinião de seu cliente seja devidamente considerada pelo juízo, transformando a participação de um ato formal figurativo em um exercício real de cidadania e participação.

‘Paradoxo paulista’: entraves burocráticos que dificultam cumprir a lei

O juiz não decide se cabe ou não a representação jurídica da criança vítima. Este é um direito dela: da criança. Um direito que está previsto em lei, repito: no artigo 5º, incisos V e VII, da Lei nº 13.431/2017. E secundado em atos infralegais, inclusive resolução do CNJ. Ocorre que, apesar da clareza da legislação, a efetivação do direito à assistência jurídica autônoma da criança vítima em São Paulo tem sido uma jornada marcada por avanços e recuos que configuram um verdadeiro paradoxo.

Na prática, a função de advogado da criança deve ser exercida pela Defensoria Pública. Os incisos XI e XVIII do artigo 4º da Lei Complementar nº 80/1994 prescrevem que é atribuição da Defensoria Pública “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente” e atuar na preservação e reparação dos direitos de vítimas, incluindo o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas vulneráveis. No mesmo sentido dispõe o artigo 5º, inciso VI, letra “c”, da Lei Complementar nº 988/2006 quanto à Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Portanto, nas localidades em que há defensoria já instalada caberá ao defensor público o exercício da defesa das crianças e adolescentes vítimas. Nas comarcas nas quais não há defensoria instalada, por sua vez, a função deve ser exercida por advogados dativos, nomeados nos termos de convênio celebrado pela defensoria com a respectiva OAB, ou por núcleos de prática jurídica de universidades conveniadas com a defensoria. Contudo, em qualquer situação, seja ou não diretamente por Defensor Público, é inegociável que haja um profissional jurídico especializado atuando em favor da criança vítima.

Recentemente, na qualidade de juiz orientador do depoimento especial no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, tive a oportunidade de elaborar um parecer publicado às páginas 27 a 38 do Diário Eletrônico da Justiça, edição 4.287, de 16 de setembro de 2025. O parecer foi motivado por um questionamento por parte de um magistrado paulista em razão de uma série de obstáculos criados pela administração do convênio entre a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP) e a OAB-SP, que, na prática, inviabilizavam ou dificultam a nomeação do advogado da criança nas Comarcas em que não há atuação direta do órgão.

Após uma insistente resistência, a DPE-SP alterou o convênio com a OAB e iniciaram-se as nomeações de defensores para as crianças vítimas no depoimento especial. Porém, ao invés de tais nomeações alcançarem todas as vítimas infantojuvenis, verificou-se que, para nomear um advogado dativo, a DPE-SP passou a impor condições injustificáveis.

Por exemplo, a defensoria passou a exigir que, antes da nomeação do advogado, a vítima fosse submetida a uma prévia triagem de sua condição financeira. Equivocado, a meu ver. É fato que a função preponderante da DPE é a defesa jurídica dos hipossuficientes. Mas, há casos em que a atuação do órgão não se justifica em razão da pobreza do assistido e sim por sua especial condição de vulnerabilidade. É precisamente a hipótese do defensor da criança vítima no DE. Logo, é inexigível a análise da situação econômica da vítima. Para deixar claro: mesmo que a vítima infantil seja uma criança rica e abastada, ela tem o direito de ser representada por Defensor Público ou, na sua ausência, advogado dativo.

A triagem de hipossuficiência financeira como pré-requisito para a nomeação é um equívoco que desvirtua a natureza do direito. A defensoria pública tem a função institucional, prevista no artigo 4º, XVIII, da Lei Complementar nº 80/1994, de atuar na proteção de vítimas de abusos e violência, independentemente de sua renda. A vulnerabilidade, aqui, é a presunção que justifica a atuação estatal.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a assistência jurídica prevista na Lei Maria da Penha (Informativo nº 855), sedimentou um entendimento que se aplica perfeitamente a este debate. A Corte decidiu que a nomeação da defensoria pública para a vítima deve ser “compulsória” e automática, funcionando como uma tutela provisória que garante assistência desde o primeiro instante, sem depender de pedido da vítima ou de análise de sua condição financeira. Ora, se tal raciocínio se aplica a mulheres adultas, com ainda mais razão deve valer para crianças e adolescentes. O procedimento em vigor em São Paulo, ao exigir que a criança passe por uma triagem, inverte a lógica da proteção e transfere à vítima um ônus que é do Estado.

Entretanto, a mais grave delas é a exigência, para nomeação de advogado dativo, de anterior realização da entrevista prévia e o subsequente encaminhamento ao órgão do respectivo relatório técnico sigiloso. Essa prática representa uma profunda inversão de finalidades e uma séria violação da confidencialidade. Como já abordamos aqui, a entrevista prévia é um ato protetivo, de natureza psicossocial e sigiloso, destinado a avaliar as condições da criança para depor. Não é um ato de produção de prova.

Condicionar a nomeação de um advogado — um direito fundamental — à devassa do conteúdo íntimo de uma avaliação técnica é um contrassenso que o próprio TJ-SP desaconselha, por meio do Comunicado CG Nº 512/2024, que recomenda a não participação de advogados nas entrevistas psicossociais para preservar seu sigilo.

Caminho para o futuro

Em meio a esse cenário de entraves, uma luz surge de dentro da própria DPE-SP. O Núcleo Especializado da Infância e Juventude (Neij) da instituição elaborou uma corajosa e tecnicamente primorosa proposta de Política Institucional de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência. O documento, que ainda aguarda deliberação da cúpula da defensoria, representa um marco de amadurecimento e a síntese do que deve ser a atuação da entidade no século 21.

A proposta do Neij acerta em múltiplos pontos. Primeiramente, reconhece que a atuação do defensor da criança transcende o mero acompanhamento da audiência, abrangendo todo o percurso processual, desde os atos preparatórios (inclusive a entrevista prévia) até o acompanhamento posterior junto à rede de proteção. Em segundo lugar, propõe que essa função seja exercida, preferencialmente, pelos próprios defensores públicos, reconhecendo a complexidade da matéria e a necessidade de uma atuação qualificada e com memória institucional. O reconhecimento da atividade como de especial dificuldade demonstra um pragmatismo que busca viabilizar a proposta na prática. Esta visão se contrapõe à alternativa de delegar uma tarefa tão sensível a um sistema suplementar e, por vezes, precarizado, de advocacia dativa.

É chegada a hora de a Defensoria Pública de São Paulo acolher essa visão progressista e remover, de uma vez por todas, os injustificáveis obstáculos que hoje impedem o pleno acesso das crianças à justiça. A atuação da Defensoria Pública deve ser um farol de proteção para os vulneráveis, não um labirinto de burocracias.

Assim sendo, uma vez designado o depoimento especial, o juiz deve requisitar à DPE a nomeação imediata e automática de um defensor para a criança, independentemente de sua condição financeira ou de pedido expresso. Essa nomeação inicial garantirá que nenhuma criança fique desassistida, preservando-se, contudo, seu direito de, a qualquer momento, constituir um advogado particular de sua confiança, momento no qual a defensoria será exonerada. Oxalá assim (finalmente) seja tão logo! A infância tem pressa.

Autor

  • Redação Uberlândia no Foco

    O Uberlândia no Foco é um portal de notícias localizado na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, que tem como objetivo informar a população sobre os acontecimentos importantes da região do Triângulo Mineiro e do país. Fundado por Rafael Patrici Nazar e Sabrina Justino Fernandes, o portal busca ser referência para aqueles que buscam informações precisas e atualizadas sobre a cidade e a região. Nosso objetivo é cobrir uma ampla gama de assuntos, incluindo política, economia, saúde, educação, cultura, entre outros. Além disso, visamos abordar também, questões relevantes a nível nacional, garantindo assim que seus leitores estejam sempre informados sobre os acontecimentos mais importantes do país. Nossa equipe é altamente capacitada e dedicada a fornecer informações precisas e confiáveis aos seus leitores. Eles trabalham incansavelmente para garantir que as notícias sejam atualizadas e verificadas antes de serem publicadas no portal. Buscamos oferecer aos leitores uma plataforma interativa, na qual possam compartilhar suas opiniões e participar de debates sobre os assuntos mais importantes da cidade e da região. Isso torna o portal uma plataforma democrática, onde todas as vozes podem ser ouvidas e valorizadas. Não deixe de nos seguir para ficar por dentro das últimas atualizações e notícias relevantes. Juntos, temos uma grande caminhada pela frente.

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