Possibilidade de anistia à luz da Constituinte e da história


Opinião

Com as recentes condenações do ex-presidente Jair Bolsonaro e de integrantes do chamado “núcleo crucial” da trama golpista, reacendeu-se em Brasília — e fora dela — o debate sobre a constitucionalidade de uma eventual lei de anistia para atores políticos e militares envolvidos nos fatos submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal.

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Na esfera acadêmica, vozes respeitabilíssimas destacam que, embora a Constituição não traga uma vedação expressa e direta à anistia nesse contexto, a incompatibilidade decorreria do próprio regime democrático consagrado pela Carta de 1988. O argumento, em síntese, é direto e atraente: um Estado Democrático de Direito incorreria em uma forma de autofagia institucional se autorizasse a anistia de crimes políticos cometidos contra a própria democracia. Propõe-se aqui avaliar a higidez desse argumento.

Ressalte-se que o objetivo da análise ora sugerida não é discutir a conveniência política, a justiça material ou a oportunidade legislativa de uma eventual anistia — juízo que compete exclusivamente ao Congresso , sujeito à sanção do presidente da República, nos termos do artigo 48, VIII, da Constituição —, mas tão somente examinar sua compatibilidade (ou incompatibilidade) com a mesma Constituição. Tampouco se tenciona tecer qualquer juízo de valor sobre a condução e os vereditos do Supremo nos chamados “processos do golpe”, mas apenas definir se a Carta Política contemplaria ou não a possibilidade, em tese, de que pessoas eventualmente condenadas por aquela corte sejam anistiadas por decisão de cunho estritamente político.

Do ponto de vista normativo, o nó do debate está em dois incisos vizinhos do famoso artigo 5º da Constituição. O inciso XLIII determina que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como hediondos. Já o inciso XLIV qualifica como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito, sem mencionar graça ou anistia. Essa assimetria textual — vedação expressa no XLIII versus silêncio no XLIV — é o coração da controvérsia: para uns, a leitura literal permitiria anistia nos casos do XLIV; para outros, uma leitura sistemática e teleológica, coerente com o desenho do regime democrático, conduziria à mesma vedação material ao perdão estatal a crimes que se voltam contra a própria democracia.

Ainda de acordo com estes últimos, se a Constituição tornou imprescritível a ofensiva de grupos armados contra a ordem democrática, por coerência material, também teria vedado graça e anistia — ainda que não o haja dito.

O problema é que tal inferência somente se sustenta à custa de atribuir-se ao Constituinte de 1987–1988 uma espécie de desatenção clamorosa: no inciso imediatamente anterior (XLIII), ele proibiu expressamente graça e anistia para certos delitos; no subsequente (XLIV), não o fez. Em hermenêutica jurídica, silêncio contíguo a proibição explícita costuma significar escolha consciente, e não um lapso. Converter tal omissão em proibição implícita é pressupor, indevidamente, uma ignorância aberrante do Constituinte Originário.

Os anais da Constituinte de 1987/1988 confirmam esse raciocínio. No Diário da Assembleia Nacional Constituinte de 23 de fevereiro de 1988 [1], registra-se o Requerimento de Destaque nº 2.184, pelo qual o deputado Carlos Alberto Caó, autor da Emenda nº 2P-00655-8, que deu origem ao atual inciso XLIV, propôs retirar da redação inicialmente sugerida na emenda a expressão “e insuscetível do benefício da anistia”. A matéria foi então submetida ao Plenário e aprovada, fixando-se como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, por 281 votos a 120, com 20 abstenções — exatamente a formulação que hoje figura no inciso XLIV.

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Em outras palavras, a possibilidade de anistia para esses crimes não foi inadvertidamente tolerada pelo Constituinte: ela foi objeto de debate explícito e decisão consciente, ao se retirar da redação final a vedação à anistia enquanto se optou por se preservar a imprescritibilidade.

Não deixa de ser revelador que, no escrutínio nominal, parlamentares identificados com a esquerda — entre eles, o então deputado Luiz Inácio Lula da Silva — tenham acompanhado a redação final do dispositivo, enquanto a resistência se haja concentrado em figuras mais vinculadas ao ciclo autoritário recém-encerrado. É bem verdade que tudo indica que a divergência principal não gravitou em torno da eventual (in)anistiabilidade dos delitos, mas do próprio mandado constitucional de criminalização da ofensiva contra a ordem democrática. Em termos políticos, a controvérsia incidia menos sobre as “características acessórias” — imprescritibilidade e impossibilidade de anistia — e mais sobre o reconhecimento em si, na própria Constituição, de que atentar contra o Estado Democrático de Direito deveria ser crime.

De todo modo, esse foi o texto aprovado e é o texto vigente. Ignorá-lo, com as devidas vênias, significaria relativizar o pacto político que deu ao país a sua “Constituição Cidadã”, além de substituir escolhas explícitas do Constituinte por proibições implícitas “descobertas” a posteriori, reescrevendo-se, por via interpretativa, aquilo que fora deliberado no Plenário da Assembleia Constituinte. Em matéria tão sensível, o respeito ao arranjo político-jurídico de 1988 — com seus silêncios deliberados e suas vedações expressas — não é textualismo: é a própria garantia de que o país continua a operar sob regras claras, frutos de um compromisso plural e democraticamente firmado.

Cumpre ainda lembrar que anistias são instrumentos historicamente usados para despolarizar sociedades e recompor pactos de convivência após ciclos agudos de conflito. A própria palavra deriva do grego ἀμνηστία (amnēstía) [2] — da mesma raiz de “amnésia” —, remetendo à ideia de “esquecimento”. Isso denota que, sob certas circunstâncias, é lícito “passar uma borracha no passado” para viabilizar a continuidade, o futuro e a sobrevivência de uma comunidade política formada por grupos antagônicos.

Tampouco se sustenta a ideia de que uma Constituição “como um todo”, sistematicamente considerada e teleologicamente interpretada, poderia impor óbice ao benefício sob análise. Exemplos históricos existem em abundância para rechaçar tal argumento.

Os confederados secessionistas foram anistiados pelo governo dos Estados Unidos após o fim da Guerra Civil americana [3] — ainda que a constituição daquele país tenha sido ratificada com o objetivo de “formar uma mais perfeita União” [4]. Os atores envolvidos no controverso processo de separação da Catalunha também foram anistiados pelo Estado Espanhol [5] — ainda que a constituição desse mesmo Estado nada refira sobre a possibilidade de anistia —, algo que foi convalidado recentemente pelo Tribunal Constitucional daquele país [6].

Mesmo a França do Pós-Guerra anistiou em grande parte os acusados de indignidade nacional por colaboração com a ocupação nazista [7] — ainda que a Constituição da IV República haja sido aprovada “na esteira da vitória dos povos livres sobre os regimes que tentaram escravizar e degradar a pessoa humana” [8]. O mesmo se passou no Brasil em diversas oportunidades e, para fugir do ponto em comum da “anistia ampla, geral e irrestrita” de 1979, pode-se citar o “pleno e inteiro esquecimento dos atos praticados pelos republicanos” durante a Revolta Farroupilha, ajustado no artigo 2º do Tratado de Poncho Verde [9], que pôs fim ao mais grave dos conflitos pelos quais passou o Império do Brasil a partir da década de 1830 — ainda que a Constituição de 1824 tivesse sido concebida para amarrar, sob ferrenho unitarismo, todo o extinto domínio português na América do Sul.

Possibilidade jurídica foi reconhecida pelo STF e mantida pela CF/88

Evidentemente, dada a sensibilidade do assunto, em todos os países com ordens constitucionais sólidas, a análise das circunstâncias indicativas da anistia incumbe a órgãos dotados de representatividade política para, sob escrutínio público, decidir sobre a oportunidade e a conveniência da medida. No Brasil, por opção do mesmo Constituinte de 1987/1988, tais órgãos são o Congresso Nacional, ao qual cabe deliberar sobre a matéria, e o presidente da República, incumbido de vetar ou sancionar os projetos aprovados pelo primeiro.

Nesse sentido, o próprio STF, em outros tempos, já reconheceu que a anistia, embora passível de controle de constitucionalidade pela corte, foi desenhada precipuamente para crimes políticos, consubstanciando ato político, com natureza política, correndo por conta do Congresso e do chefe do Executivo a avaliação dos critérios de conveniência e oportunidade do ato [10].

Subtrair de tais Poderes a possibilidade de mera discussão de tão extraordinária medida, e sobretudo ao argumento de que a Constituição a proibiria de antemão nas suas “entrelinhas”, sonegaria da ordem jurídica nacional, em patente desrespeito ao processo histórico de que oriunda a Lei Maior, uma ferramenta que, independentemente de ser virtuosa ou não, foi utilizada em larga escala para a cessação de períodos de turbulência institucional no Brasil e no mundo.

Conclui-se, portanto, que a Constituição de 1988, ao vedar expressamente graça e anistia no artigo 5º, XLIII, e silenciar quanto a esses benefícios no inciso XLIV — silêncio mantido de forma deliberada pela Assembleia Nacional Constituinte — não exclui, em tese, a possibilidade jurídica de lei de anistia referente aos delitos contra a ordem democrática. Tal medida é ato político-legislativo de competência do Congresso (artigo 48, VIII), sujeito à sanção presidencial.

O direito comparado e o exame histórico empreendido demonstram que ordens jurídicas consolidadas recorreram a anistias para recomposição institucional, o que reforça que a vedação pretendida não pode ser construída implicitamente contra a opção textual e histórica do Constituinte. Resta, assim, um debate legítimo de oportunidade e conveniência — e não de impossibilidade constitucional —, cabendo exclusivamente aos atores políticos conduzi-lo.

 


[1] BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, Ano II, n. 188. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 23 fev. 1988. Disponível aqui.

[2] ANISTIA. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2025. Disponível aqui.

[3] MAGLIOCCA, Gerard N. Amnesty and Section Three of the Fourteenth Amendment. Constitutional Commentary, v. 36, p. 87-155, 2021. Disponível aqui.

[4] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constitution of the United States. Disponível aqui.

[5] GOODMAN, Al. Parlamento da Espanha aprova lei polêmica de anistia para separatistas catalães. CNN Brasil, 30 maio 2024. Disponível aqui.

[6] AGENCE FRANCE-PRESSE. Tribunal Constitucional espanhol valida lei de anistia para independentistas catalães. Notícias UOL, 26 jun. 2025. Disponível aqui.

[7] FRANÇA. Loi n° 51-18, du 5 jan. 1951, portant amnistie, instituant un régime de libération anticipée, limitant les effets de la dégradation nationale et réprimant les activités antinationales.  Disponível aqui.

[8] FRANÇA. Constitution de la République française (27 octobre 1946). Disponível aqui.

[9] PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. A paz dos caramurus. Porto Alegre: Memorial do Rio Grande do Sul, 2005. (Cadernos de História, n. 14). Disponível aqui. 2025.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.231-2/DF. Relator: Min. Carlos Velloso. Tribunal Pleno. Julgado em: 15 dez. 2005. Diário da Justiça da União, Brasília, DF, n. 81, p. 63, 28 abr. 2006. Disponível aqui.

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  • Redação Uberlândia no Foco

    O Uberlândia no Foco é um portal de notícias localizado na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, que tem como objetivo informar a população sobre os acontecimentos importantes da região do Triângulo Mineiro e do país. Fundado por Rafael Patrici Nazar e Sabrina Justino Fernandes, o portal busca ser referência para aqueles que buscam informações precisas e atualizadas sobre a cidade e a região. Nosso objetivo é cobrir uma ampla gama de assuntos, incluindo política, economia, saúde, educação, cultura, entre outros. Além disso, visamos abordar também, questões relevantes a nível nacional, garantindo assim que seus leitores estejam sempre informados sobre os acontecimentos mais importantes do país. Nossa equipe é altamente capacitada e dedicada a fornecer informações precisas e confiáveis aos seus leitores. Eles trabalham incansavelmente para garantir que as notícias sejam atualizadas e verificadas antes de serem publicadas no portal. Buscamos oferecer aos leitores uma plataforma interativa, na qual possam compartilhar suas opiniões e participar de debates sobre os assuntos mais importantes da cidade e da região. Isso torna o portal uma plataforma democrática, onde todas as vozes podem ser ouvidas e valorizadas. Não deixe de nos seguir para ficar por dentro das últimas atualizações e notícias relevantes. Juntos, temos uma grande caminhada pela frente.

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