O rock sempre teve lado — e nunca foi o da neutralidade. Ao longo das décadas, esse gênero musical foi muito mais que entretenimento: tornou-se uma linguagem de resistência, contestação e expressão política. Por isso, quando o vocalista da banda Ira!, Nasi, foi vaiado em pleno show em Contagem (MG) após gritar “sem anistia” em referência à punição dos envolvidos nos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, sua resposta contundente ao público foi mais que um desabafo — foi uma reafirmação da essência do rock.
Diante das vaias, Nasi não se calou. Ao contrário, pegou o microfone e mandou o recado direto:
“Tem gente que acompanha o Ira!, mas nunca entendeu o Ira! […] Por favor, vão embora da nossa vida! Vão embora e não apareçam mais em shows, não comprem nossos discos, não apareçam mais. É um pedido que eu faço.”
É uma fala forte, sem rodeios, que gerou polêmica, mas que também revela a coerência de um artista que entende o lugar histórico da sua banda e do gênero que representa. O Ira!, desde os anos 80, cantou contra o conformismo, contra a apatia e contra o reacionarismo. Suas letras sempre refletiram o espírito de inquietação e inconformismo, marcas registradas do rock brasileiro daquele período, ao lado de Legião Urbana, Titãs, Plebe Rude e tantos outros que formaram a trilha sonora da redemocratização do país.
Ao pedir que bolsonaristas não compareçam mais a seus shows, Nasi resgata esse espírito original do rock: provocar, denunciar, desestabilizar. A ideia de que a arte deve ser neutra ou apenas “diversão” ignora a história do próprio gênero. Rock é política, sim. É o grito de quem se recusa a aceitar a barbárie como normal. Quando Nasi grita “sem anistia”, ele faz ecoar um clamor democrático, em nome da responsabilização de quem atentou contra as instituições e a Constituição.
Em um país ainda traumatizado por um passado de ditadura militar e marcado por tentativas de relativização da violência institucional, essa postura é corajosa — e necessária. O silêncio, nesse caso, seria cumplicidade.
Há quem diga que Nasi “exagerou”, que deveria “respeitar todas as opiniões”. Mas essa é uma armadilha perigosa, porque nem toda opinião é inofensiva. Defender golpe, atacar a democracia e relativizar crimes políticos não é diferença de pensamento — é ameaça real à liberdade que o rock sempre defendeu.
O episódio de Contagem mostra que o palco ainda é trincheira. Mesmo em tempos em que o rock parece ter perdido espaço nas paradas e nos algoritmos, ele ainda pode cumprir sua missão original: incomodar. Nasi, com sua postura firme, nos lembra que o rock não serve para agradar plateias complacentes com o autoritarismo. O rock, quando é verdadeiro, serve para acordá-las.
Se alguém ainda não entendeu isso, talvez nunca tenha entendido o Ira!. E talvez nunca tenha entendido o próprio rock.