
No último dia 15, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Habeas Corpus nº 315.220, relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura. A decisão reconheceu nula a evidência resultante do afastamento dos sigilos telemáticos ao argumento, em síntese, de que a duração temporal das medidas feriria o princípio da proporcionalidade.
Na inicial de Habeas Corpus por nós impetrado, buscou-se o reconhecimento de coação ilegal praticada pela autoridade coatora ao autorizar, em relação ao paciente, a interceptação telemática pelo prazo ininterrupto e retroativo de mais de dez anos, em flagrante ofensa ao que dispõe o artigo 5°, X e XII, da CF/88, e os artigos 1°, parágrafo único, e 5°, caput, ambos da Lei n° 9.296/96.
O caso tratava de investigação contra membro do Ministério Público que teve suas comunicações telefônicas e telemáticas interceptadas a partir de representação formulada pelo Parquet. O propósito inaugural era apurar suposta prática dos crimes de falsidade ideológica, corrupção e peculato. Nos autos da medida cautelar, o desembargador relator deferiu, entre outras diligências, a quebra do sigilo de três endereços eletrônicos do paciente, abrangendo o período de janeiro de 2004 até a data da efetivação da medida (em junho de 2014), culminando em uma quebra a envolver um prazo retroativo e ininterrupto de mais de dez anos.
Demonstrou-se que a referida prova serviu de subsídio fático à denúncia oferecida em face do acusado. Na inicial, o Ministério Público ofereceu denúncia pela suposta prática de corrupção ativa e passiva, fundamentando-a em conversa de e-mail interceptada retroativamente em um dos endereços eletrônicos monitorados.
A ministra Maria Thereza destacou em seu voto que o sigilo das comunicações, embora protegido pela Constituição, não é absoluto e que a quebra de e-mails, por se tratar de medida extrema, só se admite como último recurso, mediante o preenchimento de prévias condições legais e inafastáveis. Ponderou que, no caso, não foi demonstrada a imprescindibilidade da providência, que ainda alcançou período superior a dez anos, revelando flagrante desproporção:
Não se descura que uma denúncia pode reportar-se a fatos longevos, cujo arcabouço probatório somente se aperfeiçoou em data atual. Entretanto, no tocante à providência cautelar prévia, ao necessitar o Estado de dispor do método constritivo dos direitos individuais, deve-se ter em voga a razoabilidade do período de constrição, atribuindo-se racionalidade ao próprio Estado Democrático de Direito, ao albergar valores subjacentes da justiça, obstando-se, desse modo, o arbítrio descomedido.
A decisão foi objeto de recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Em preliminar do recurso, discute-se a (i)legitimidade ativa do órgão para intervir em processo do qual não detém a condição de parte, haja vista que a legitimidade recursal caberia à Procuradoria Geral da República. O caso atualmente aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal, já havendo sido reconhecida a repercussão geral do tema (RE 985.392).
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À época, a supracitada decisão representou um avanço em termos de freios e contenção à devassa que os órgãos persecutórios estavam acostumados a promover. Especialmente por tratarem a quebra do sigilo telemático como prima ratio da investigação.
Aos poucos, interceptações telefônicas e telemáticas vem perdendo significativamente a importância. Seja porque a estrutura técnica exigida para a obtenção da prova é robusta, seja porque as comunicações e dados telemáticos podem, hoje, ser obtidos de forma mais ágil e ampla. Os smartphones viraram um diário eletrônico das pessoas, contendo a vida digital do investigado, GPS, reconhecimentos faciais, câmeras de vigilância e toda a sua comunicação. Uma busca e apreensão do aparelho – cujas senhas são facilmente quebradas – tem se mostrado mais produtiva para a obtenção da prova. Quando não é possível, a quebra do sigilo telemático do e-mail vinculado ao telefone possibilita a obtenção de todo o backup de dados. Seja como for, o acesso a essas informações a partir de novas estratégias de obtenção da prova deve seguir obedecendo parâmetros básicos de proporcionalidade.
Um dos debates relacionados ao tema está em curso no Supremo Tribunal Federal, que examina, em repercussão geral (Tema 1.148), os limites para decretação judicial da quebra de sigilo de dados telemáticos, no âmbito de procedimentos penais, em relação a pessoas indeterminadas. O caso chegou à corte após recurso do Google contra decisão da 4ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que ordenou à plataforma a identificação dos protocolos de internet (IPs) de dispositivos que realizaram buscas com expressões consideradas relevantes para a investigação.
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A investigação dizia respeito ao assassinato da vereadora Marielle Franco, ocorrido em 2018. Segundo a decisão judicial, o Google deveria informar a identidade de pessoas que, nos dias que antecederam o crime, pesquisaram os termos “Marielle Franco”, “vereadora Marielle”, “agenda vereadora Marielle”, “Casa das Pretas”, “Rua dos Inválidos” e “Rua dos Inválidos número 122”.
A controvérsia central, portanto, não envolve apenas a extensão da quebra do sigilo de dados telemáticos, mas também quem pode ser atingido pela medida, já que abrange pessoas indeterminadas que não figuram formalmente como investigadas.
A ministra Rosa Weber, relatora, deu provimento ao recurso extraordinário e propôs a fixação da seguinte tese:
À luz dos direitos fundamentais à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao devido processo legal, o artigo 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) não ampara ordem judicial genérica e não individualizada de fornecimento dos registros de conexão e de acesso dos usuários que, em lapso temporal demarcado, tenham pesquisado vocábulos ou expressões específicas em provedores de aplicação.
Na sequência o ministro Alexandre de Moraes pediu vista e abriu divergência entendendo possível a quebra, desde que observados os requisitos previstos no artigo 22 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), nas hipóteses em que há fundado indício de ocorrência de crime, motivação da utilidade dos registros e determinação do período, no que foi acompanhado pelo ministro Cristiano Zanin.
O ministro André Mendonça acompanhou a relatora e votou no sentido de que a quebra de sigilo telemático não individualizada só pode ser autorizada com base em critérios estritos e objetivos.
Mais recentemente, em 24/9/2025, o ministro Gilmar Mendes votou, preliminarmente, pelo cancelamento da repercussão geral do caso, limitando o julgamento ao processo concreto. No mérito, acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro Alexandre de Moraes, negando provimento ao recurso extraordinário e propondo a incorporação, na eventual tese a ser aprovada, dos elementos apresentados em seu voto.
Destaca-se, em especial, a ressalva feita pelo ministro: em investigações de crimes hediondos e na hipótese específica de busca reversa de dados de pesquisa em buscadores da internet, o juiz poderá autorizar ordem que alcance pessoas ainda não identificadas, desde que existam elementos já obtidos que permitam sua posterior individualização, sempre que a medida se mostrar necessária, adequada e proporcional.
Votaram ainda os ministros Nunes Marques e Edson Fachin, que acompanharam a divergência inaugurada pelo ministro Alexandre de Moraes. Na continuidade, pediu vista o ministro Dias Toffoli e o julgamento está suspenso.
O quórum até agora formado sugere que a Suprema Corte reconhecerá a validade da decretação judicial da quebra do sigilo de dados telemáticos em relação a pessoas indeterminadas, independentemente de vínculo indiciário ou suspeita de prática ilícita.
O alerta recai, portanto, sobre a ampliação temporal e material das medidas investigatórias de caráter “excepcional”. Recorde-se que as interceptações telefônicas e telemáticas sempre tiveram prazo legalmente previsto e deveriam ser aplicadas apenas de forma complementar. Todavia, a expansão de sua utilização, sob o argumento de enfrentar a criminalidade contemporânea, acabou por alongar os critérios e flexibilizar garantias, redundando, como se viu no início, em devassa telemática de mais de dez anos.
O caso concreto que serve de pano de fundo para a tese a ser fixada pelo Supremo Tribunal Federal apresenta-se como um dos mais graves, complexos e desafiadores da justiça brasileira contemporânea. Todavia, como adverte-nos o ministro Marco Aurélio Mello, “processo não tem capa” e a qualidade do réu e da vítima não deve interferir na discussão jurídica posta, sobretudo porque o reconhecimento de repercussão geral da tese amplia a possibilidade de devassa indiscriminada de dados e projeta riscos que alcançam toda a coletividade, inclusive aqueles que não figuram — nem remotamente — como investigados.