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Sobre amor, ciência e direitos LGBTQIA+

À esquerda, Gustavo segura Maya e o golden retriever do casal, enquanto Robert, à direita, segura Marc, em um passeio rotineiro em família (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Na Universidade Católica de Brasília (UCB), em meio ao complexo de 18 blocos de edifícios que formam o conglomerado, Robert Rosselló e Gustavo Catunda se encontraram pela força do destino ou pela ironia nada previsível da vida.

O que se sabe é que, no momento em que os calouros da turma de 2010 do curso de Engenharia Civil se apresentaram, indo ao centro do círculo de jovens sonhadores — ou apenas ansiosos pela sua primeira festa universitária — um romance estava prestes a começar. Foi um início tranquilo, talvez confuso, que resultaria, 12 anos depois, em uma família formada por Robert, Gustavo, Marc, Maya e o golden retriever Rafa.

Robert se levantou, caminhou até o centro da roda, disse seu nome e as primeiras coisas que lhe vieram à mente. Tudo isso acompanhado pelos olhos de Gustavo. Ele tinha certeza: seriam amigos. Apenas isso, nada colorido. Afinal, naquela época, nenhum dos dois sabia ao certo como lidar com o sentimento de gostar de alguém do mesmo sexo.

O fato que também não se cala é que, independente do amor, morar no Brasil significa viver no país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo. Só em 2021, foram registradas 300 ocorrências de mortes violentas contra indivíduos da comunidade, além de 276 homicídios e 24 suicídios, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB) — responsáveis pela pesquisa nacional sobre mortes violentas em decorrência de LGBTfobia.

Apesar de tudo isso, o que é impossível de ser ignorado é que, desde aquele círculo, Robert e Gustavo se tornaram inseparáveis. Juntos eles planejaram tudo, desde se casarem com suas respectivas esposas, em um cenário onde viveriam eternamente próximos como vizinhos, até como seriam suas viagens em família. Nada disso aconteceu, ou pelo menos não aconteceu exatamente dessa forma.

Em meio a música alta, jovens adultos por toda a parte, rostos felizes e brilhantes de suor, bebida barata e cubos de gelo, o romance de Robert e Gustavo ganhou forma. A data que, mais tarde, seria guardada com tanto carinho pelo casal, começou com um beijo sem muito floreio, típico de quem já não aguenta mais se esconder.

O resto é história. Da faculdade para a vida, eles ficaram e não se largaram. Se casaram. Cresceram. Abriram uma empresa. Fecharam. Mudaram de cidade. Foram tomados pelo desejo de expandir este amor, de construir uma família. Para isso, decidiram recorrer às técnicas de reprodução assistida, o que os levaram a descobrir alguns detalhes importantes para a vida que queriam construir.

Nº1. Em casos de casais homoafetivos, existem dois tipos de reprodução assistida: a inseminação artificial e a fertilização in vitro(fiv).

Nº2. No primeiro [inseminação artificial], é feita a indução da ovulação no indivíduo e, em seguida, é injetado o sêmem preparado em laboratório, dando início à gestação intrauterina. O esperma utilizado nesse processo pode provir de algum familiar ou ser colhido de um banco de doadores.

Nº3. Tratando-se da fiv, a alternativa escolhida por Robert e Gustavo, e a mais comum em casais formados por dois homens, todos os passos acontecem fora de um útero. Inicialmente, com uma agulha conectada ao aparelho de ultrassom, são aspirados os óvulos da doadora. Adiante, em uma placa de laboratório, um desses óvulos é unido ao espermatozóide — que pode ser de um dos membros do casal — formando o embrião. Essa vida em potencial, então, é levada a um útero de substituição, também conhecido como barriga solidária.

 

“Prima, cê topa ser nossa barriga?”

Foi esta mensagem que surgiu no celular de Lorenna, às 10 horas da manhã de um dia qualquer em 2020: simples, direta e cheia de expectativas. Com um dedilhar rápido sobre a tela, sem pensar muito, a resposta que chegou até seu primo Gustavo não foi diferente, um enorme “siiim!”, seguido de: “só me deixa confirmar com a minha mãe antes”.

Lorenna Resende talvez não imaginasse que, logo após a confirmação da mãe, ela estaria prestes a ser a primeira barriga solidária do Brasil na resolução 2.294//21, além de responsável por tornar Robert e Gustavo os pais dos primeiros gêmeos que possuem a genética de ambos. Muito confuso?

 

Linha do tempo: Reprodução Assistida no Brasil e no Mundo. (Arte: Gabriel Reis)

 

Camila Toffoli é ginecologista obstetra, especialista em infertilidade, professora do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e mãe de dois meninos. Para além disso, é ela quem explica como, nesse caso, o artificial foi usado para materializar  sentimentos reais.

O que acontece é mais simples do que parece. Por meio da fertilização in vitro, ao invés de um óvulo ser unido a um espermatozoide, ambas as quantidades são duplicadas. Ou seja, dois óvulos para dois espermatozoides, que, após fecundados, são colocados no útero voluntário. Nove meses depois, do amor e da ciência, surgem duas vidas e uma nova família, mais do que nunca, completa.

 

Momentos reais e de muito amor com Maya e Marc em um dia no parque. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Clímax

“Nesse vídeo quero deixar registrado um dos melhores momentos de nossas vidas”. Frases como essa dão início a muitos conteúdos que aparecem quando se pesquisa sobre reações de familiares a gravidez, no YouTube. A mãe, emocionada, abraça a filha e o genro, atravessa a sala, beija o marido e repete incansavelmente “eu sabia, eu sabia!”. O jovem casal rapidamente é parabenizado por todos da casa. Há choros de alegria, promessas do que farão quando a criança nascer e até uma briga se inicia para ver quem será responsável pelo primeiro banho do bebê. Tudo em menos de três minutos.

Independente do tempo, a situação com os engenheiros foi oposta. Não houve festa, não houve comemoração. Apenas silêncio e dúvida. Então, o que era para ser um dos melhores momentos da vida deste casal, se aproximava de uma xícara de café esquecida durante toda uma manhã: fria e sem gosto.

“Toda a situação naquele momento foi bastante complicada. Até amigos gays achavam nossa atitude um completo absurdo. Foi todo um contexto de pessoas e familiares nos virando a cara e perguntando onde estaria a mãe. Um pesadelo”, conta Gustavo.

Eles ficaram paralisados. “Somente um dos pais poderá acompanhar durante o ultrassom”, diz a moça na secretaria de uma das clínicas onde realizavam o pré-natal. Os dias de Robert e Gustavo eram assim. Em meio à grande alegria de finalmente poderem realizar a fertilização in vitro, com a ajuda de Lorenna, vez ou outra a realidade preconceituosa e pouco inclusiva do Brasil batia na porta.

O fato é que, independente da mudança nas regras hospitalares após o ocorrido, Gustavo não ouviu os primeiros batimentos cardíacos de seus filhos. Ele ficou ali, na sala de espera, junto ao ar gelado comum a esses lugares, acompanhado apenas da inevitável sensação de incapacitante inerente a momentos como esse.

Passado o clímax, a certeza que os movimentava era de que, em alguns meses, haveriam pequenas crianças sedentas por todo o amor que eles tinham para dar. Sabiam que o sonho se tornaria realidade. E a vida — independente da vontade daqueles que jamais conheceram a particularidade do amor que eles já sentiam por sua família — seguiria em frente.

 

Direitos LGBTQIA+

A história, que poderia ter um final trágico como acontece nos mais diversos cenários brasileiros, só foge da curva devido a algumas conquistas que têm amparado a comunidade LGBTQIA+. Mesmo sabendo que muito ainda precisa ser construído e colocado em prática, ressaltar os direitos constitucionalizados no Brasil é importante para voltar os olhos a tudo aquilo que já foi e ainda precisa ser colocado em pauta quando se trata das vidas de pessoas que vêm sendo ceifadas em nosso país dia a dia.

1- Criminalização da LGBTfobia: Em 2019, o Supremo Tribunal Federal(STF) decidiu enquadrar a LGBTfobia à Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989), colocando-o como crime imprescritível e inafiançável. Ainda, o artigo 20 da lei determina a pena de um a três anos de reclusão e multa para quem cometer o crime.

2- Lei Maria da Penha: A lei, de número 11.340/06, criou, em 2022, mecanismos para coibir a violência doméstica ou familiar contra mulheres cis, trans e travestis.

3- União estável: Em 14 de maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução nº 175, que permitiu aos cartórios de todo o Brasil realizarem diretamente o casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

4- Direito ao uso do nome social: Desde 2016, de acordo com artigo 1º, parágrafo único do Decreto federal nº 8.727, dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

5- Direito à adoção: Desde 2011, quando o STF reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, para fins de adoção, são aplicados os mesmos requisitos aos casais heteroafetivos e homoafetivos.

 

Instagram.com/@2depais/

O endereço acima poderia ser de uma casa. Um lugar que poderia caber um pouco de tudo e um tanto de todos. Aos três meses de gestação, movidos pela ausência de referências para a vida que tanto desejavam, Robert e Gustavo criaram um perfil no Instagram, para mostrarem ao mundo, passo a passo, o que estava por vir.

 

A página no instagram onde Robert e Gustavo compartilham sua rotina como pais já conta com mais de 143 mil seguidores. (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Em meio a vídeos de comédia do casal e fotos dignas de romances, uma dupla de sorrisos largos e pares de olhos grandes e brilhantes assumem todo o protagonismo. O que começou como um sonho, hoje são gêmeos acompanhados por inúmeras pessoas que querem ver o seu crescimento.

“As pessoas no geral querem nos passar a sensação de que não podemos ser felizes, de que não podemos ter filhos ou ter a vida profissional que queremos. O perfil surge para contar nossa história e mostrar que tudo isso é possível”, explica o casal.

A única certeza — proporcionada pelo tic tac do tempo — dos dois jovens, e que inicialmente se contentam em serem apenas vizinhos, é uma só:

Na Universidade Católica de Brasília (UCB), entre o complexo de 18 blocos de edifícios que formam o conglomerado, Robert Rosselló e Gustavo Catunda se encontraram pela força do destino ou pela ironia nada previsível da vida. Conforme os calouros da turma de 2010 do curso de Engenharia Civil se apresentavam, um romance começou. Foi um início tranquilo, confuso, apaixonante e regado de tecnologias — usadas para tornar sonhos em realidade. Hoje, 12 anos depois, é uma família formada por Robert, Gustavo, Marc, Maya e o golden retriever Rafa.

 

Política de uso: A reprodução de textos, fotografias e outros conteúdos publicados pela Diretoria de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia (Dirco/UFU) é livre; porém, solicitamos que seja(m) citado(s) o(s) autor(es) e o Portal Comunica UFU.



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