UFPE supera ataques de entidades médicas e dá início à primeira turma de medicina do Pronera

As lágrimas eram de felicidade e revolta de quem, mesmo tendo os direitos garantidos, só consegue acessá-los enfrentando muitas brigas e disputas judiciais. Eram quilombolas, camponeses, sem-terra, filhas e filhos de quem luta por um pedaço de chão que a Constituição lhe assegura, mas que as elites e o Estado insistem em negar. Desde que a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) anunciou a abertura de um curso de medicina voltado para quilombolas e assentados rurais, eles se viram atacados no seu direito de acessar a educação superior.

Mas a tensão deu lugar ao alívio e à alegria, pois nesta primeira semana de dezembro as aulas começaram para os 80 estudantes que, vindos de zonas rurais de diversos estados brasileiros, iniciaram a preparação para se formarem médicas e médicos. A turma é composta por 59 mulheres e 21 homens.

“Sabemos como é difícil encontrar pessoas negras e quilombolas em cursos de medicina. Vi no TikTok pessoas dizendo que não temos capacidade, que nós seríamos ‘médicos de açougue’ e outras coisas preconceituosas”, recorda Milenna Ketlyn, de 21 anos, em entrevista ao Brasil de Fato.

Nascida na comunidade quilombola-indígena Tiririca dos Crioulos, em Carnaubeira da Penha (PE), sertão do Itaparica, a caloura de medicina deseja poder aplicar na comunidade o aprendizado adquirido na universidade. “A maioria dos médicos não retorna para o interior após se formarem. Mas quero retribuir. Quando se é da própria comunidade, vemos as pessoas não como pacientes desconhecidos, mas de forma humanizada, são nossos parentes e amigos”, vislumbra a estudante do primeiro curso de medicina na história do país realizado por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).

Quem também tem esse olhar é Gildson Amaro, de 29 anos, da zona rural de Capela, no agreste de Sergipe. “Todos nós aqui acreditamos que existe a possibilidade de, com o conhecimento adquirido na medicina, contribuirmos melhor para a saúde das pessoas das nossas comunidades. Senti na pele a dificuldade de não conseguir atendimento médico na comunidade. Sei da importância de ter um profissional que entende aquele povo e olha com amor para ele”, garante o jovem.

Graduado em nutrição, Gildson Amaro se mostra tranquilo em relação aos ataques políticos e judiciais dirigidos ao curso que ele inicia agora. “São falas pautadas em ideias que não são verdadeiras. O Pronera existe desde 1998 e é um programa totalmente regulamentado pelo governo federal”, pontua.

Desde meados de setembro, políticos da direita pernambucana, especialmente os ligados às entidades médicas, adotaram discursos contra o curso de medicina do Pronera na UFPE, inclusive acionando a Justiça. As acusações são de favorecimento indevido, politização e incapacidade intelectual dos selecionados.

Pronera

Os cursos do Pronera são realizados com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e, no caso desta graduação, também do Ministério da Saúde. A turma “extra” não afeta o processo seletivo da graduação de medicina via Sisu.

Criado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, ao longo de 27 anos, o Pronera já formou mais de 200 mil estudantes em cursos de educação básica, tecnóloga, graduação e pós-graduação – com todas as vagas reservadas para residentes em áreas de reforma agrária. As universidades públicas entram como parceiras, recebendo recursos e cedendo espaços físicos e professores.

Dirigente do MST na área de educação, Rubneuza Leandro recorda a carência de médicos nas zonas rurais e a frequente oposição de entidades de classe à democratização da medicina. “Precisaram vir médicos de outros países porque os daqui se recusaram a ir para os interiores atender o povo. E quando os estrangeiros vieram, os médicos brasileiros disseram que eles ‘pareciam empregadas domésticas’, porque eram pretos e a medicina brasileira é branca. Por isso tanto ódio quando formamos uma turma de agricultores que serão médicos”, avalia.

Médicos do campo

Representando o Ministério da Saúde na cerimônia de aula inaugural, Lívia Milena Méllo lembrou que “o propósito do Pronera é formar profissionais que entendam e atuem na realidade do campo”. “Essa turma reafirma que o SUS pertence igualmente à cidade e ao campo”, discursou a diretora da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde do ministério.

“Essa é a construção de uma medicina que não abandona ninguém. Que aqui se inaugure uma nova geração de médicas e médicos do povo, do Brasil profundo”, afirmou visivelmente emocionada.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o reitor da UFPE, Alfredo Gomes, se disse “muito feliz e seguro” por saber que “a universidade está realizando sua missão social”. “Quem acredita na educação e está comprometido em vencer as desigualdades sociais e econômicas, precisa ver a educação como um meio para essa necessária ruptura de ciclos”.

“Desejo que tenhamos um aproveitamento de 100% da turma, para formar 80 médicas e médicos para atender a população nos interiores. E quero chamar outras universidades públicas para que também ofertem cursos de medicina e outras áreas que precisam ser democratizadas”, convocou Gomes.

Formada por 80 estudantes, sendo 59 mulheres e 21 homens, turma de medicina do Pronera acontece no Campus Agreste da UFPE
Formada por 80 estudantes, sendo 59 mulheres e 21 homens, turma de medicina do Pronera ocorre no campus Agreste da UFPE | Crédito: Vinícius Sobreira/Brasil de Fato

O diretor do Campus Agreste (CAA) da UFPE, Dilson Cavalcanti, exaltou todo o corpo docente da instituição e destacou que, desde o primeiro momento, não houve “qualquer resistência neste campus”. “Tenho certeza de que este é o primeiro, mas não será o último curso de medicina do Pronera”, celebrou.

“Será uma turma de excelência porque esta é uma universidade de excelência, mas também porque quando o povo brasileiro tem uma oportunidade, ele agarra e faz valer”, avaliou Cavalcanti. O diretor também destacou que a ideia do curso foi de Jaime Amorim, histórico militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), assentado em Caruaru.

A deputada estadual Rosa Amorim (PT), militante sem terra nascida no Assentamento Normandia, em Caruaru, não conteve o choro ao afirmar que está “vendo de perto a história acontecer”. “As lágrimas são de felicidade e carregam séculos de luta por reparação histórica no Brasil. Aos que disseram que filho de agricultor, de empregada doméstica e de gente pobre jamais deveria ocupar uma cadeira de medicina na universidade, estamos aqui para dizer que ocuparemos, porque esse lugar nos pertence e nós contaremos uma nova história”, discursou.

Amorim pediu que a estudante Maria Eduarda ficasse de pé. “Ela é filha de Sandro, sem-terra, da luta de décadas sob a lona preta para conquistar um pedaço de chão, a luta para mudar as histórias de sua família e do Brasil”, apresentou.

“Ela tem a pele preta que construiu esse país e foi explorada por séculos, mas agora, de cabeça erguida, neste lugar que nos negaram, nós dizemos que viemos para ficar. Essa será a nova cara da medicina, queiram ou não queiram os juízes”, acrescentou.

O secretário executivo adjunto do Ministério da Educação, Rodolfo Cabral, que assim como Lívia é ex-aluno da UFPE, disse que a abertura do curso “é um gesto político para as comunidades que mais precisam”. “Que essa turma nos traga mais esperança no futuro”, desejou.

A professora universitária Andreia Campigotto, que leciona para essa turma do Pronera, celebrou que a UFPE “está cumprindo o seu dever, que é abrir as portas para o povo”. “A instituição mostra que entende que a formação médica precisa considerar também as dimensões e pluralidades territoriais e culturais do Brasil.”

Campigotto se diz “profundamente atravessada” pela nova turma justamente na universidade em que trabalha. “Sou filha de assentados da reforma agrária. Nasci e cresci num chão que foi uma conquista coletiva. Estudei em escolas do campo. Eu sei que a trajetória até aqui não foi fácil”, disse ela em entrevista do Brasil de Fato. Natural do Rio Grande do Sul, a médica cursou a graduação em medicina em Cuba. “Hoje a universidade concretiza um direito que é garantido à população do campo”, celebrou.

Frutos da luta

A professora e médica lamenta que grande parte da categoria médica esteja capturada ideologicamente. “Existe uma disputa ideológica e infelizmente parte dos médicos nunca aceitarão que trabalhadores do campo acessem esses espaços. Historicamente, as entidades médicas são espaços elitizados. Quando o povo dá um passo adiante, elas se incomodam. Mas a universidade está cumprindo o seu papel de produzir ciência e formar bons profissionais para atender a população”, pontua.

Rubneuza Leandro chamou atenção para que os estudantes se comprometam com os estudos. “Lá fora muita gente está torcendo para que dê errado. Então se empenhem, estudem para ser os bons profissionais que as nossas comunidades precisam. Viramos vitrine e espelho. Vocês já não representam mais a si próprios, mas suas comunidades quilombolas, movimentos sem terra e outros. Honrem essas bandeiras”, convocou.

“Foram muitas brigas e muitas mãos para esse curso acontecer. Disputas no Judiciário, nos ministérios, disputa por orçamento, nos territórios. Foi muita luta – e a gente conquistou. Vocês aqui representam essa batalha e essa vitória. Então assumam esse compromisso de cuidar da nossa gente a quem sempre foi negado o acesso à saúde”, concluiu a deputada Rosa Amorim.

Rubneuza Leandro também reconheceu o papel do reitor Alfredo Gomes no enfrentamento necessário para garantir o curso, que chegou a ser suspenso por liminares. “Outros teriam se acovardado diante do acirramento, mas ele foi à Justiça e foi a público defender este curso. Parabenizo também os professores e reitores que saíram em defesa do curso de medicina no Pronera”, agradeceu.

“Já formamos médicos da base do MST em Cuba e na Venezuela, mas esta turma é histórica porque é a primeira vez que a universidade brasileira faz isso. Espero que venham também cursos de odontologia e enfermagem”, sugeriu a educadora.

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  • Redação Uberlândia no Foco

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